Metodologia da Louça Lavada

Bruno Brito
6 min readMay 4, 2022

Mais perto do seu som, no seu mundo sobreterrâneo.
Varrendo o terreiro, lavando os pratos como quem faz música.
Sem prantos, na fonte, na boca da criação.
Não há filosofia além disso, só o novo.
O sonho dourado da família.

Luiz Galvão
Trecho sobre o álbum Acabou Chorare, dos Novos Baianos.

Lavar a louça pode ser mais do que simplesmente a limpeza geral dos trens de cozinha ou um fardo diário carregado pelo cidadão comum. “Lavar as vasilhas”, como dizem em Goiás, pode ser um exercício cognitivo, ou melhor, uma experimentação metodológica.

Quando mergulhei no universo da leitura e da escrita para desenvolver minha dissertação de mestrado, a prática de lavar louça tornou-se uma espécie de meditação matutina, onde eu criava um “vazio” mental capaz de organizar algumas ideias que estavam caoticamente flutuando em minha cabeça. Quando notei que os resultados dessa prática eram benéficos para mim e meu trabalho, curiosamente lavar a louça se tornou parte da minha rotina acadêmica.

Obviamente o caráter meditativo era — e ainda é — o maior benefício da prática em questão, no entanto, com o passar dos anos analisando tal fenômeno, notei que lavar a louça em si é como uma metáfora do próprio processo de pesquisa e criação. E é disso que este texto trata.

No célebre manual “Como se Faz uma Tese”, escrito por Umberto Eco, o qual li tardiamente após a conclusão do meu mestrado, me chamou a atenção um trecho da apresentação feita por Lucrécia D’Aléssio Ferrara e que diz o seguinte:

(…) na ousadia de uma montagem metodológica, na humildade de quem desconfia do que descobriu, na segurança de poder ir além: descoberta como invenção, resposta contida na pergunta e, sobretudo, o prazer do jogo. A tese tem algo a ver com a invenção. Uma receita às avessas: a descoberta.

No sensível parágrafo, Lucrécia menciona que a tese, ou a pesquisa acadêmica, tem a ver com o prazer do jogo, no qual devemos entrar com ousadia, humildade e segurança. Este jogo também tem a ver com a invenção e a descoberta, e é durante seu processo que se encontram as pistas e se criam os caminhos. Algo similar a uma partida de xadrez ou de futebol, onde as regras estão dadas e ainda assim tudo está em aberto, passível de criatividade e adaptação.

Aqui cabe um importante parêntesis sobre a palavra “método”, da qual estamos tratando. Método deriva do grego methodos e quer dizer “através ou por meio do caminho”. Ou seja, o método não é a fórmula pronta empregada para alcançar um determinado resultado, mas sim o próprio caminho a ser criado e percorrido pelo indivíduo que almeja um fim. Sendo assim, lavar a louça consiste em percorrer este trajeto ambiguamente árduo e prazeroso, no qual partimos de um ambiente caótico e desorganizado e chegamos a um resultado mais límpido e confortante.

Para se começar uma pesquisa ou lavar uma louça, o primeiro passo é fazer a leitura do contexto. É preciso mapear e entender o que temos à nossa frente, para então partir para a ação. Copos de vidro, talheres, panelas, vasilhas de plástico, louças delicadas e taças de vinho: cada categoria de objeto requer um tratamento especial, um lado correto da bucha e um trato personalizado com seu manejo: não se manipula uma porcelana como um tabuleiro de alumínio e vice-versa.

Para isso, a segunda etapa é destinada a organizar nossos materiais e, simultaneamente, ver de que modo podemos articular tais elementos numa cronologia que faça sentido e que garanta um resultado final satisfatório. Afinal, não se empilham panelas pesadas sobre taças finas, colocando estas em risco.

Para que a louça seja bem acomodada ou que a pesquisa seja bem construída, Umberto Eco nos dá uma dica valiosa: a elaboração de um sumário prévio, que será nosso pontapé inicial. Para aqueles que utilizam um escorredor de louça sobre a pia, a dica é tentar visualizar e estruturar previamente os setores nos quais serão depositados os vasilhames e afins. Ao se fazer tal exercício, evitamos, por exemplo, que um determinado número de copos não caiba no piso inferior da estrutura de secagem por conta de sua altura. É importante salientar que a qualquer momento podemos mudar a ordem das louças no escorredor ou mesmo dos temas em nossa pesquisa. Nesse tipo de situação, ainda segundo o autor italiano: “foi esse trajeto que você modificou, não um trajeto qualquer.”

Começa-se então a lavagem propriamente dita da louça ou a manipulação de nossos tópicos e fontes bibliográficas. Eis uma pergunta: iniciar com a lavagem das panelas gordurosas, comprometendo assim a bucha com o óleo em demasia, ou começar pelos copos em que simplesmente bebemos água, portanto quase limpos? Há aqueles que preferem começar a pesquisa e a louça pelos elementos mais difíceis, tirando-os da frente para depois se deleitar com os temas mais confortáveis. Aqui, cada indivíduo poderá fazer sua escolha e não há certo ou errado. Porém, suspeito que ao manipular um copo simples, sem muita sujeira para lidar, podemos encontrar pistas e nos preparar para lavar as louças mais complexas ao fim, cheias de arestas para lapidação. Existem temas “maiores” que só farão sentido após a reflexão de outros temas dito “menores”.

Enxaguar as vasilhas é como revisar os textos. É neste momento que notamos a qualidade de nosso trabalho anterior, o de ensaboar. A água, cumprindo sua função, desfaz a espuma feita e nos revela se o objeto está cristalino ou não. Existem copos simples, que mesmo “limpos”, ainda contém marcas de dedos. Do mesmo modo, existem tópicos relativamente simples mas que clamam por um cuidado maior para que o resultado seja mais claro e inteligível. O melhor e o mais correto a se fazer é retornar o copo (ou o texto) para a etapa anterior, quantas vezes necessário.

Vale ressaltar que na prática de pesquisa, bem como na louça, enxaguada e depositada simultaneamente, se escreve enquanto pensa e se pensa enquanto escreve.

Há projetos que parecem muito claros enquanto só pensados; quando se começa a escrever, tudo se esboroa em nossas mãos. Pode-se ter ideias claras sobre o ponto de partida e de chegada, mas se verificará que não se sabe muito bem como chegar de um ao outro e o que haverá entre esses dois pontos. (ECO, 2019)

Estamos na fase final da louça e da pesquisa e aqui é necessário tomar cuidado com ambos. A montagem final e a disposição de cada coisa trabalhada deve ser minuciosa, afinal de contas, um gesto brusco demais pode comprometer a pilha de vasilhas ou um excesso de confiança pode fazer tudo desmoronar na cozinha. É preciso saber a hora de encerrar a montagem final do escorredor e do texto. Ao final de uma jornada rica em descobertas, acumulamos novas informações até então desconhecidas para nós e muitas vezes queremos avançar um pouco mais, ensaboar um pouco mais, lustrar um pouco mais, empilhar um pouco mais. Mas tenho um aviso: essa não será nossa primeira louça, tampouco nossa última pesquisa. Uma vez pesquisadores e lavadores de louça, seguiremos sempre cismando com novos assuntos para investigar ou arranjando métodos para se percorrer na pia doméstica. Se achar arriscado demais colocar uma peça de porcelana sobre a pilha de potes, guarde-a de outra maneira para uma próxima oportunidade, e não corra tanto o risco de quebrar a peça — ou sua ideia — antes da hora. Não estou dizendo para que sejamos medrosos ou receosos demais, às vezes é preciso, sim, arriscar. Alerto apenas para que alguns temas sejam melhor maturados e trabalhados posteriormente, com o devido tempo e cuidado.

Aqui chegamos ao último e mais importante passo da louça e da pesquisa: o de usá-las. Não devemos, de maneira alguma, tornar imaculados os objetos lavados, bem como manter secretos nossos estudos. É preciso chamar os amigos e também os desconhecidos para desfrutar de nosso trabalho, sujar os copos, manchar os pratos, usar os talheres, ler os artigos, saborear os capítulos, duvidar das conclusões e opinar nos sumários. Melhor que lavar a louça é desfrutar das coisas limpas, usando-as novamente até gastá-las. Melhor do que pesquisar, é saber que nosso trabalho poderá circular mundo afora e ser lido por pessoas que talvez nem conheçamos e que irão concordar, discordar e até generosamente contribuir para o amadurecimento de nossas ideias. Ao nos doarmos a tais atividades, formais ou não-formais, nobres ou ordinárias, fazemos com que o mundo ao nosso redor se torne um exercício constante de criação, conhecimento e civilidade.

Referência Bibliográfica
ECO, Umberto. Como se Faz uma Tese. São Paulo: Perspectiva. 2019

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