Depois do Almoço

Bruno Brito
4 min readApr 5, 2022

O ideal seria fazer de cada coisa o centro do universo.
Ortega y Gasset

Capelinhas, jarros, copos, flores, fachadas de casas, lugares comuns e composições corriqueiras sobre uma toalha da mesa. São alguns dos elementos que compõem o vocabulário visual de Paula Siebra, natural do Ceará. Seu trabalho lança luz sobre um cotidiano brasileiro que é silencioso e sutil, diferente daquele outro comercial, facilmente colocado na gaveta da “brasilidade”, com profusão de cores saturadas, sons, texturas e excessos de modo geral.

Paula opta por uma paleta de cores esmaecidas e que já aparentam ter nascido antigas. Cores movediças que, paradoxalmente, foram temperadas por uma jovem pintora nos dias de hoje. Movediças pois parecem cambiar feito as paisagens de areia do nordeste brasileiro, ambiente familiar à artista: um amarelo que tende ao verde, um azul que tende ao marrom, um branco que tende ao cinza. Areias estas que também resultam nas tradicionais garrafinhas ilustradas por artesãos no Ceará e arredores, ornamentadas com signos regionais que também afloram na obra da artista.

Se Paula se tornasse uma artesã da areia, provavelmente optaria por preencher ampulhetas ao invés de garrafas. Ampulhetas para que pensássemos na brevidade das imagens e das nossas memórias mais sutis. Bastaria girar o objeto para que a imagem se dissolvesse diante de nossos olhos, resultando numa grande mancha de alguma cor ainda sem nome. Enquanto a artista emprega a linguagem da pintura, Paula nos apresenta imagens que parecem estar desaparecendo lentamente, ou de um ponto de vista mais otimista, aflorando novamente no campo da tela, como uma cianotipia sendo revelada com a luz do Sol.

Curiosamente ficamos órfãos diante das pinturas e não sabemos em que momento se encontra a imagem em questão. Não identificamos quando foi pintada, quando foi redescoberta ou quanto tempo ainda irá durar sobre o suporte plano. Para um observador desavisado como eu no primeiro contato com a obra, suas pinturas parecem de algum artista de outrora, talvez um modernista ou um anônimo da primeira metade do século XX no Brasil. Não somente pela idade que a pintura aparenta ter, mas pela forma que a imagem foi concebida e apresentada. Isso nos leva a crer que parece haver um pensamento que paira no imaginário de alguns pintores no decorrer dos anos e Paula está entre eles: Alfredo Volpi, José Pancetti, Lore Koch, Lorenzato, Rebolo, Júlio Martins da Silva, Portinari, Tarsila, Piero della Francesca e tantos outros, como Vallotton, que a artista tanto gosta e reconhece nas despretensiosas garrafinhas cearenses.

Parece lícito dizer que os trabalhos de Paula são dotados de uma atemporalidade desconcertante e que poderiam ter sido feitos 100 anos atrás, ontem, hoje ou mesmo amanhã, por conta de seu frescor. Olhar para este conjunto de imagens nos dá a sensação que emprestamos a memória de alguém que sequer conhecemos, com cenas que não vivemos e até sentimos saudade de algo que nunca possuímos. Essa intimidade, retratada de maneira sensível por Paula, nos faz acessar uma memória que é atemporal, difusa e etérea.

Apesar da luminosidade em seus quadros apontar para um certo calor alaranjado, como daqueles finais de tarde em De Chirico, as pinturas de Paula parecem registrar uma hora não-cronológica, ou melhor, uma “entre-hora”. Hora em que as cabras desaparecem no misticismo sertanejo, como descreve Câmara Cascudo. Hora entre uma badalada e outra do sino da matriz. Hora que precede o terço e a ladainha. A artista nunca retrata a hora cheia, protagonista do relógio analógico e dos compromissos anotados no calendário de parede. Pelo contrário, Paula parece buscar um certo anonimato do tempo e, por quê não, do espaço. Ao representar esses elementos de um cotidiano popular, a artista preenche justamente as lacunas dessa vida doméstica e comunitária, comum a muitos de nós.

Suas pinturas, desenhos e gravuras se assemelham a fotografias tiradas por um narrador oculto que chegou atrasado para registrar a cena principal, ficando apenas com a parte residual do fato ocorrido. A este narrador restou somente a maçã desistida ao meio, a migalha de pão na mesa, o café frio na garrafa e o amado que, de tanto esperar, adormeceu.

Seriam essas as imagens que permeiam nosso inconsciente entre um sonho e outro? No ínterim das narrativas heróicas, assustadoras ou surreais — estas que lembramos ao acordar — estariam esses trechos ordinários da vida que não reparamos em vigília? O varal de roupas sem relevância entre uma árvore e um sobrado, aqui parece aflorar na lembrança de Paula, em sua pintura e em nós, observadores.

Como no conto de Clarice Lispector, onde um cego mascando chiclete no ponto de ônibus desestabiliza a protagonista, as cenas pintadas por Paula parecem nos deslocar para estas frestas da lembrança, desimportantes para a vida oficial das horas cheias, anotadas e cumpridas. É como se estes objetos e personagens — discretos e silenciosos — clamassem por nossa atenção momentaneamente, não de maneira espalhafatosa ou efusiva, mas por meio de seus próprios significados contidos em si, emergidos agora na superfície da tela. São elementos impregnados dos acontecimentos ao seu redor que, ao serem organizados pela artista, se apresentam a nós de maneira humilde e hierática.

Bruno Brito
23 de Janeiro de 2022

Paula Siebra, Pau de fita, 2021, óleo sobre tela, 80 x 60 cm
Paula Siebra, Vaso de flores, 2017, óleo sobre tela, 40 × 30 cm
Paula Siebra, Merenda com suspiros, 2020, óleo sobre tela, 30 x 20 cm
Paula Siebra, Casa em Cascavel, 2020, óleo sobre tela, 30 x 20 cm

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